sexta-feira, 17 de julho de 2009

Romance de Salatiel.

I. O velório
Se foi triste, se não foi,
se gostou de olhar o azul,
se sofreu por desamor,
se digeria a contento,
se procurou Deus (achou-o?)
não conta mais.

Salatiel
Já é matéria sem ganga,
que se oferta, horizontal,
aos olhares e aos pesares.

Chegam vizinhos, amigos
de longa data, parentes
trajando roupas de festas.
E ao penetrarem na sala,
onde Salatiel repousa
de todos os cansaços,
esquecem-se de si próprios
ou porventura se encontram
com total exatidão:
o rosto bêbado é sóbrio,
o folgazão, compungido,
os sempre austeros ensaiam
gestos suaves e os tristes
disfarçam sua tristeza.

Mas Salatiel defunto
adorna o meio da sala
sombria, apesar das flores,
sem nem perceber, que pena
que o gordo senhor de óculos
veio lhe pedir perdão
por malquerenças antigas,
um vulto esguio num canto,
a recordar o colóquio
que teve com o morto, um dia,
chuvoso, em antiga praça,
e desse encontro conserva lembrança em forma de flor,
de sombra do foi flor
que perdura, delicada,
entre as páginas de um livro
de poemas de amor eterno,
do seu barbeiro, contrito,
que lhe contempla o bigode,
a barba espessa, azulada,
e lembra canção de infância
contando que o capinzal
é cabeleira de mortos.

Pelas narinas do morto,
que já não sentem o aroma
do café que corre a sala,
penetra o velado som
dos faladores incautos:
cada qual lembra seus mortos,
todos bons, quase perfeitos
em sua humana condição,
imperfeitos, porque humanaos,
mas isentos da soberba.

Depois cambiam de tema:
falam de jogos, de guerras,
comentam velhas intrigas,
fazendo sempre um parêntesis
para louvar as virtudes
de quem foi Salatiel.
Que já não é. Suas orelhas
são búzios côncavos, secos.

Ah, Salatiel, se visses
a ternura de teu filho,
de todos o mais rebelde,
que regozijo seria.
Com quanto zelo ele muda
as velas dos castiçais
e espanta - no gesto, afago-
a mosca da tua boca.

Mas Salatiel não vê.
Como também não percebe
as filhas arrematando
com seus soluços ritmados
o choro seco da mãe
que, em seu respeito ao defunto,
repele os erros furtivos,
o desamor não contado
e o desapreço profundo
de saber-se repartida
que lhe voltam à memória,
já se dissolvem no pranto
e o purificam.

II. O sepulcro
Na clareira de treva
em que o tempo não conta
e onde o brilho de luas
afoga-se em argila,
os vermes já circundam
a carne recém-vinda.
Abraçam-na com júbilo
de seres separados
que afinal se reencontram
e este abraço revela
um sutil parentesco:
não aquele que implica
em um correr de hormônios,
certas cumplicidades
pobres conquanto físicas
e que o tempo desgasta
e em lembrança converte.
Outro, porém, mais fundo,
que elimina a distância
do que, por ser minguado,
alonga-se no sonho,
ao exato minério
feliz em seu contorno:
e brandamente reúne
a besta que se entrega
a êxtases promíscuos
e o que de amor constrói
sandálias adequadas
para a longa excursão,
numa aventura só
de crescer e acabar
e aguardar, entre sombras,
que a mão cega do mundo
vá recompondo as cinzas.

e com um linguajar
que só as coisas entendem
os vermes confabulam
acerca do destino
deste novo parente
que, aos poucos, se devolve
ao útero da terra.

III. Epílogo
O dono de tal carne, todavia,
conhece a paz de canto em que se evola
de garganta demasido tensa.
Liberto dos enredos da memória,
isento de esperança, ele palmilha
os caminhos abstratos, modulados
em matéria de além, de sono puro.

Salatiel não-sendo desconhece
a exata perfeição do que não é
e integra-se à paisagem absoluta
onde nem sombras há das três colunas,
suportes do planalto que assegura
o repouso dos deuses fatigados:
consante prolongar do sétimo dia.

O outrora sonhador de galardões,
que passeou pelo bosque dos enigmas
e entregou-se a engenhos intrincados
como o de mergulhar na própria luz
e de lá regressar sujo de treva,
ou do chão mais rasteiro para erguer montanhas,
exerce, então, mister dos mais humildes:
Salatiel não sendo já faz parte
do azul na arquitetura do vazio.

Thiago de Mello.

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