sexta-feira, 17 de julho de 2009

É natural, mas fede.

Tudo é muito natural. É como o mar
noturno, as ondas vão, as ondas vêm.
É como a cotidiana hipocrisia,
eu nem sei mais como se diz bom-dia.
É como o beija-flor querendo o sumo
da flor que entrega sem saber que dá.
É a gaivota planando, é natural,
o peixe que ela viu já foi-se embora,
desesperança alada, de perfil.
De frente é o olhar, que logo se desvia
da legião deserdada, é natural.
É a cascata descendo, é o girassol
humilde na esperança de uma luz
que lhe brinde o favor da poluição.
É tudo, tudo, muito natural.
A paloma cagando na cabeça
da princesa esculpida em solidão.
É como aquela antiga mão do índio
que eu vi tremendo na perfuratriz
num sovacão da mina boliviana.
É como a história natural das águas
que fazem dos rebojos o mau fim
dos homens que perseguem seringueiras,
destino duro do meu tio Joaquim.
É tudo natural na Venezuela:
o povo come ardências de óleo sujo
enquanto as autopistas te deslumbram
e forjas teorias on the rocks.
A solidariedade se transforma
em favor, os crimes em memória,
ninguém mais se comove e se acostuma
à dor da mordidura em pleno peito.
Quero voltar pro morro, é natural,
pois lá é que estão as curvas da chinela
da morena que um dia, fatigada,
queria mais, que eu fosse dentro dela,
como um rei, um brinquedo, uma agonia,
e então nós fomos juntos sendo a vida,
mas de repente a morte, é natural.
Tudo é tão natural, é como o céu
estrelado demais da minha terra
cobrindo o sonho opaco de um menino
- mordido de carapanã, caralho! -
que sequer sabe onde começa a fome.
As vozes do Salgueiro, na avenida,
porta-estandarte verde, me perguntam:
- E você sabe onde termina o céu?
E você sabe onde ermina a terra?
E você sabe onde termina o mar?
Canto que não, naturalmente não.
Tenho muitos mistérios misturados,
curtidos em salmoura fedorenta.
Alguns serão matéria de mercado,
como o meu coração que, tantas vezes
exposto esteve em campos de amapolas,
mas nunca foi comprado, é natural.
Outros serão caterva de alçapões:
químico, turvo, o mundo me penetra
pelos poros mais podres, me rebelo,
não posso me entregar. Homem do Atlântico
pasto da luz latino-americana,
conheço a petroquímica ao reverso:
um fogo que se entrega à atmosfera,
fedento triste e inútil, enquanto hormônios,
enquanto pernas, enquanto fervores,
na solidão soturna das cidades,
na entressombra dourada das favelas,
se abraçam procurando a primavera
numa chama que nunca vai jamais
erguer a liberdade, é natural,
desse escuro porão, refúgio do homem,
mordido pelo sol do escorpião.

Thiago de Mello.

Nenhum comentário: